Imagine
a seguinte situação: você tem dificuldade de locomoção e os motoristas de uma
determinada empresa de ônibus, reiteradamente, se negam a parar num ponto para que
você embarque. Tal comportamento dos motoristas é repetitivo, o que obriga você
a se esconder e somente depois que o ônibus pare aparecer para embarcar. Ainda
assim, por diversas vezes você teve o embarque obstado pelo próprio trocador.
Agora,
imagine que você é um cadeirante, uma pessoa portadora de deficiência física e
que precisa, regularmente, se locomover de transporte público, seja indo para o
trabalho, a escola, ou a qualquer outro compromisso.
Esse
comportamento da empresa / motoristas, que antes já parecia reprovável, agora
parece extremamente discriminatório, não é?
Parece
plausível isso acontecer?
Pois
foi isso o que aconteceu com um cadeirante, na cidade mineira de Juiz de Fora.
Dia
após dia, de forma contínua e reiterada, motoristas e trocadores impediam o
embarque do passageiro ou alegando que o elevador estava quebrado ou passando
direto do ponto quando o avistavam. O cadeirante percebeu, também, que quando
se escondia o ônibus da empresa paravam no ponto com mais frequência do que
quando ele estava no ponto.
O
passageiro cadeirante diante de tantas infrações ao seu direito de
acessibilidade, de locomoção, de transporte, direito este garantido não só em
legislação brasileira mas também em pactos internacionais (v. g.: Convenção Internacional sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência e Lei 13.146/2015 - Lei Brasileira de
Inclusão da Pessoa com Deficiência – LBI -) impetrou uma AÇÃO DE COMPENSAÇÃO
POR DANOS MORAIS em face da Empresa de Viação.
Considerando que não havia provas
suficientes do alegado pelo impetrante/cadeirante/passageiro de ônibus, o juiz
de primeiro grau julgou improcedente o pedido de indenização. Inconformado, o
impetrante recorreu. No TJ-MG, sua ação foi acolhida e a empresa condenada ao
pagamento de indenização no valor de R$ 25.000,00, a título de danos morais.
Veja trecho da decisão do
Tribunal de Justiça de Minas Gerais, extraído do voto da Ministra Relatora do
STJ Nancy Andrighi:
“Examinando
acuradamente todo o processado, constatou-se que a ré/apelada não se
desincumbiu de seu ônus probatório disposto no artigo 373, II, do NCPC, enquanto
o autor/apelante demonstrou, satisfatoriamente, o defeito na prestação dos
serviços de transporte fornecidos por aquela (ré).
Isso porque, em que
pesem as declarações da empresa ré de que sempre atuou em consonância com as
suas atribuições de concessionária de transporte público, as provas
testemunhais colhidas em audiência corroboram no sentido da existência de
sucessivas falhas nos serviços prestados. Confira-se:
“(...)
que esclarece que o depoente é cadeirante e em 60% (sessenta por cento) das
vezes utilizou o transporte coletivo da ré teve problemas; que as vezes o
elevador não funciona; que o trocador pede para pegar o próximo coletivo,
também sob a alegação de não funcionamento do elevador; que por algumas vezes o
depoente foi
deixado no ponto.”
(Testemunha m – DE nº 55, pág. 2)
“(...) que por
diversas vezes já presenciou o autor ser deixado nos pontos de onibus; que tal
fato acontece com as linhas 601 e 602; que às vezes os motoristas falam que o
elevador está estragado; que também alegam que a cadeira não cabe no ônibus;
que tal fato não é verdade pois ela se adapta perfeitamente ao interior do
coletivo.” (Informante n – DE nº 56, pág. 1)
“(...)
que por diversas vezes os responsáveis pelo coletivo se negavam a embarcar o
autor; que a empresa alegava que o elevador somente poderia ser utilizado
quando a pessoa estivesse com uma cadeira de rodas; (...) que mesmo após o
autor ter adquirido a cadeira de rodas os representantes da ré não permitiam
que o réu [sic] embarcasse com ela, alegando que ela era muito grande, sendo que
um afirmou que ela poderia até mesmo quebrar o elevador; (...) que já teve
ocasiões do autor ter que ficar escondido e o depoente fazer o sinal para o
coletivo parar, pois se o motorista o visse não parava o coletivo.” (Testemunha
j – DE nº 57,
pág. 02)
Não há
dúvidas, portanto, que a empresa ré deixou de cumprir com as suas obrigações de
concessionária, estando configurado o vício na prestação dos serviços de transporte
público oferecidos, seja pela falha na manutenção dos seus veículos, com os
elevadores de cadeiras de roda constantemente com defeito, seja pela desídia de
seus prepostos em não parar o veículo para o autor/apelante, chegando à
inusitada situação de, como narrado, o requerente precisar se esconder e pedir
a outra pessoa dar o sinal, pois o motorista do ônibus não pararia se o visse
no ponto.
Dessa
maneira, observa-se que a narrativa fática do autor encontra respaldo probatório coerente, sendo que a ré não se
desincumbiu, minimamente, de apresentar elementos que desconstituam o direito
do autor, limitando-se a meras alegações e depoimentos genéricos.
Destarte,
tem-se configurado o nexo de causalidade entre o dano e a conduta da concessionária,
e, por conseguinte, o dever de indenizar, cabendo tão somente a análise da
ocorrência ou não dos danos morais alegados pelo autor/apelante”.
Assim, sua ação chegou ao STJ –
Superior Tribunal de Justiça – onde foi julgada em 19/06/2018.
E o que entendeu o STJ? Que o
impetrante / autor da ação, tem razão; que a empresa de ônibus, através de seus
prepostos (empregados) violou de forma repetida os direitos assegurados aos
deficientes e os direitos relacionados ao transporte coletivo; que a empresa de
ônibus deve indenizar o passageiro pelos danos morais, confirmando a sentença
do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no valor de R$ 25.000,00.
Os direitos de acessibilidade,
corolário do direito ao transporte público de qualidade, fazem parte
inextricável dos Direitos Humanos, com função isonômica. São direitos que amparam
não apenas usuários que apresentem alguma deficiência, mas também todos os
demais usuários de transportes públicos, de forma especial quem tem alguma
dificuldade de locomoção, seja decorrente da idade seja decorrente de causa
transitória, inclusive crianças / jovens.
Ainda que o magistrado de
primeiro grau não tenha conhecido da Ação e negado ao autor o direito à
indenização, a inconformidade do autor e de seu advogado levou à vitória final,
em grau de recurso.
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