domingo, 24 de fevereiro de 2019

“Anestesia Local: um Sociólogo na Oficina do Diabo”, Edmundo Campos Coelho

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Que texto, meus caros, que texto. Encontrei no blog Proveitos Desonestos e copiei, tal como estava, para cá.
(http://proveitosdesonestos.com.br/2018/05/22/anestesia-local-um-sociologo-na-oficina-do-diabo-por-edmundo-campos-coelho/)
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Hoje, sexta-feira, 22 de maio, voltei da banca de jornal da esquina com A Notíciaescondida dentro de O Globo. Acomodo-me para folheá-lo em sessão estritamente privada e vejo que tantas foram as mudanças que o jornal pouco lembra aquele que há dois ou três anos o jornaleiro diariamente reservava para mim. Desapareceu a página do meio do segundo caderno com os nus de prostitutas do Centro e dos subúrbios (em ângulos que nunca revelavam o rosto) prometendo instantes de êxtases inimagináveis, endereço e telefone no canto da página, por obséquio. Também não encontro a coluna social, que divulgava a programação de clubes em Irajá, Coelho Neto, Ricardo de Albuquerque ou Pavuna, com seus sorridentes diretores sociais posando ao lado de magníficas mulatas ou sonhadoras debutantes. Em compensação, e para autenticar a velha identidade, permanece a coluna “Na Cama com Silvana”, um consultório sexual que deveria ser leitura obrigatória para todos os filisteus da seita do feiticeiro de Viena, mas agora sem o famoso logotipo, uma bem torneada bunda feminina encimada por um sexy espartilho. Todavia, na edição de hoje, uma foto na página central do primeiro caderno evoca uma pálida lembrança do que foi o jornal: contra o fundo negro da noite em Piedade, alinhadas à esquerda com um orelhão alaranjado da Telerj, que o flash do fotógrafo resgatou como muda testemunha oficial, duas adolescentes, em pé, olham pensativas, quase cabisbaixas, para o corpo de um homem negro estendido na calçada, do peito ao meio das canelas coberto por uma toalha branca, os pés magros e descalços sobrando no meio-fio e duas velas, uma colocada à cabeça do cadáver, outra ao seu lado direito. E sangue, muito sangue. Toda a composição transmite um doloroso sentimento de solidão, de desamparo. É uma foto imensamente triste, pungente.
Se vocês não sabem, A Notícia era aquele jornal que “quando você torcia pingava sangue”. O seu forte eram as fotos de corpos desovados ou tombados à beira de matagais, em cantos de ruas fantasmagóricas de subúrbios distantes, em valas negras a céu aberto, em terrenos baldios, muitos deles em avançado estado de decomposição ou com visíveis marcas de tortura. Membros decepados, articulações quebradas, vulvas dilaceradas crânios fraturados, intestinos à mostra. Sangue, muito sangue e também um bocado de ossos expostos e de massa encefálica derramada. As fotos eram sempre nítidas; e, supondo-se que os semblantes congelados, antes mesmo do clicar do obturador, fossem o registro de uma derradeira expressão de extremo sofrimento ou de incomensurável agonia, as fotos perpetuavam o suplício, recriavam, nas infinitas possibilidades de reprodução do filme, um único e inesgotável ato de absurda malignidade. Algo de doentio e de obsceno estava ocorrendo nos subúrbios do Rio de Janeiro.
Eu comprava diariamente o jornal e tabulava, com auxílio das fotos e do texto, o que fosse possível transformar em códigos e números: cor, sexo, profissão, idade certa ou presumida, local da desova, coisa assim. Terminei com um número significativo demissing data em algumas das variáveis, mas, em uma média de três ocorrências diárias de segunda a sexta, ao fim de pouco mais de dois anos eu tabulara aproximadamente seiscentas observações, suspeitando de que fosse parte da chamada “cifra negra”, as ocorrências que as estatísticas oficiais não registram. As distribuições de frequência confirmavam parcialmente resultados de outras pesquisas… Então, encerrei o trabalho antes de finalizá-lo, porque me dei conta do que estava realmente fazendo.

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Pelos critérios convencionais, o ano de 1983, o de início da primeira administração Brizola, foi um ano de excepcional violência no sistema penitenciário do Rio de Janeiro. De 27 de fevereiro a 24 de outubro, 31 apenados foram mortos na luta entre facções. Ao fim de um ano de exaustivo trabalho dentro das prisões da cidade, mas concentrado no complexo da rua Frei Caneca, nossa equipe de pesquisa acumulara um significativo acervo de material. Dezenas de horas de gravação de dezenas de entrevistas, números oficiais do sistema prisional, uma quantidade apreciável de anotações. Transcrevo trecho de uma das entrevistas:
– E eles batiam no senhor, quando o senhor entrava na cela?
– Quem?… O pessoal da tranca?
– É.
– Batia. Eu gritava da cela e eles me espancavam.
– E esculacharam? Estupraram o senhor?
– Fizeram tudo. Me esculacharam, tiraram minha roupa todinha, fizeram besteira comigo. Aí, eu estou até hoje lá, naquela cela lá, sem motivo nenhum.
– Na mesma cela?
– Na mesma cela. O guarda falou assim: “Olha, fulano, vou te tirar hoje daqui.” Eu falei: “Tá legal.” Aí ele falava: “Não, de manhã você vai sair.” Aí eu falava: “Tá legal.”
– E tem quanto tempo que o senhor está nesta cela?
– Eu tô com… com um mês.
– E tem um mês que o senhor está sendo esculachado?
– É, sendo esculachado… Tem um mês que estão me esculachando e tudo.
No livro que publiquei quatro anos depois de concluída a pesquisa (A Oficina do Diabo), segue-se a esse trecho o seguinte comentário: “Em se tratando dessa matéria, pode-se dar alguma credibilidade a tal depoimento?” E em seguida, em exatas nove linhas, expus as razões para uma resposta afirmativa: na “sociedade dos cativos” apenas em duas situações um indivíduo admite para estranhos ter sido estuprado:
a) ou é um “novato” e não conhece as regras da cadeia, a sua ética peculiar;
b) ou está à beira do desespero.
No caso, davam-se as duas condições. Demonstrado o ponto, isto é, aferido o grau de confiabilidade da informação, eu não fazia qualquer outro comentário sobre o “caso”. E não me lembro de que qualquer outro dos pesquisadores tenha ouvido o apelo inscrito no subtexto da entrevista. Retrospectivamente, parece-me que não o ouviríamos de qualquer forma pelas seguintes razões:
a) era necessário manter uma adequada distância dos estímulos emocionais de que tais ambientes são generosos, garantindo-se a objetividade e transparência dos registros;
b) a mínima intervenção da equipe no dia-a-dia da “sociedade dos cativos” seria ilegítima e metodologicamente inepta, pois alteraria as condições naturaisque era um dos propósitos da pesquisa descrever e analisar;
c) não queríamos problemas com os guardas e com a administração;
d) não estávamos interessados em pequenos dramas pessoais, em “notas de pé de página do grande livro da vida”, para usar a expressão de Nabokov.

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É perfeitamente compreensível que poetas e romancistas não escondam seu desdém pelos cientistas sociais, de maneira geral, e pelos sociólogos, em particular.
Thou shalt not answer questionnaires
Or quizzes upon world affairs,
Nor with compliance take any test.
Thou shalt not sit with statisticians nor commit
A social science.
E não somente, ou principalmente, porque os sociólogos julgam-se os puros de coração, incorruptíveis e virtuosos Sir Galhadas apenas porque freqüentaram centenas de horas-aula de teoria social e tiveram seu Ph.D., como Aldous Huxley nos fez o favor de lembrar em New Brave World Revisited. Transcendendo essa crença, tão comovente quanto ridícula, estaria a perícia dos sociólogos na produção e uso de uma linguagem de generalidades, tão transparente como a do senso comum e como essa povoada de metáforas mortas. A vulgarização da sociologia transformou-a numa espécie de língua franca e, quando o uso abusivo do jargão extinguiu o frescor original de suas metáforas, perdeu-se também o poder de expressão da consciência.
O poema de Auden, entretanto, denuncia outra espécie de perícia, aquela que melhor nos identifica como uma paródia do “lixeiro” de Pulp Fiction. A competência no trabalho de higienizar o cenário, de fazer a profilaxia do mundo, de transformar em “conhecimento útil” e perfeitamente tabulado, objetivo e transparente a obscenidade de corpos mutilados, o horror de centenas e absurdas sessões de tortura. Tudo o que um sociólogo não diz com expressão “taxa de homicídio” – uma mera contagem burocrática e impessoal de corpos desumanizados – o outro cala com a linguagem das variáveis e das correlações. Em um sentido literal, produzem ambos a obscenidade de associações teóricas e correlações empíricas, que nada mais são do que repetidas “cópulas entre clichês”.

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Lixeiros eméritos e mestres em generalidades, temos, é justo reconhecer, companhia, boa ou má, dependendo do ponto de vista e gosto de cada um, e até mesmo a de ficcionistas talentosos. Hiroshima, agosto de 1963, Hospital da Bomba-A. Sobreviventes do genocídio morrem de câncer em meio a sofrimentos indescritíveis. Mulheres que se esconderam durante 19 anos, envergonhadas de suas faces deformadas pela quelose, esperam, desesperançadas pelo desfecho de seu terrível destino. Alguns pacientes de suicidam. Perto dali, no Parque da Paz, a organização do 9o Congresso Mundial Contra a Bomba-A quase fracassa por divergências entre o Partido Comunista Japonês e o Partido Socialista Japonês. E, quando finalmente chega o dia inaugural, os delegados da China e da União Soviética trocam agressões verbais e rivalizam na melhor retórica sobre “desarmamento mundial”, “paz” e outras generalidades. Uma única pessoa, indignada, o redator-chefe de um diário local, pergunta se a bomba atômica não será mais conhecida pelo seu poder de destruição, que interessa às nações hegemônicas, do que pela miséria humana que ela causa. Mas os humanistas reunidos no Congresso não lhe prestam a menor atenção, e creio que Kenzaburo Oe, que tudo registrou em seu Hiroshima Notes, não se dá conta do efeito devastador do contraste grotesco. A despeito da enorme ternura, do profundo respeito com que escreve sobre as vítimas de Hiroshima – a mesma sensibilidade literária que lhe deu o Prêmio Nobel de 1994 – também ele foi infectado pelohumanismo pio, pelo reconfortante calor humano das suas boas intenções, pelo fervor missionário que se alastra entre os ideólogos e delegados ao Congresso.
Seja como for, a devastação de Hiroshima ocorrera há quase vinte anos e, além disso, certas peculiaridades de sua cultura, o fato de que haviam sido os “inimigos” e as pressões dos americanos não permitiram aos japoneses fazer da hecatombe um outro Holocausto. Ademais, como ensina um desses videogames que encantam crianças e adolescentes, “quando você mata uma pessoa, é uma tragédia; quando você mata dez milhões, é uma estatística”. Qual o número a partir do qual os humanistas deixam de se importar? Seiscentas pessoas torturadas e assassinadas no espaço de dois anos na cidade do Rio de Janeiro serão uma tragédia ou uma estatística?
Uma estatística, a crer nos humanistas, que no Rio de Janeiro são uma legião a se revezar em congressos, seminários e simpósios locais sobre direitos humanos e cidadania (mas principalmente nas telas da TV). Mas que direitos? Que cidadãos? Generalidades outra vez, a presunção da homogeneidade, o pressuposto da equivalência e da identidade de interesses, as diferenças varridas para debaixo do tapete, a macdonaldização de um humanismo tão puro e transparente que se pode ver os clichês através de suas variadas expressões. Receio que essa seja a cidadania abstrata; e essa a humanidade sem rosto e sem identidade à custa das quais vive a próspera indústria da pobreza, do crime ou dos meninos de rua. Um colega me informa que na Cidade Maravilhosa está a segunda maior concentração nacional de ONGs, superada apenas pela do Recife. São as damas e cavalheiros, usualmente de classe média e com educação superior, que se apropriaram de todas as misérias da cidade, propriedade de seu desvelo nada franciscano, pois quase sempre remunerado, diga-se de passagem. O sociólogo, o antropólogo, o humanista pedante que nesses conclaves – essa é a palavra – deita falação sobre “violência” e “tráfico de drogas” sabe, quase sempre, do que se trata: recursos para pesquisas, dinheiro oficial e internacional para campanhas e programas ineficazes e também para pagar os próprios salários e os de pesquisadores de classe média recrutados nas escolas de ciências sociais. É certo que o mercado de trabalho para o humanista profissional está em expansão, e que se regozije o ministro do Trabalho por não encontrar nesse segmento ausência de “atributos de empregabilidade” – já que “desemprego” parece-lhe, e também ao Príncipe das Generalidades, por demais genérico. Nada a ver, entretanto, com os cidadãos de Piedade – com as nossas pequenas Hiroshimas -, para não falar do ex-cidadão estendido na calçada.

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Pródigo em humanistas profissionais, o Rio de Janeiro é também o berço de uma certa historiografia que exalta o violento capoeira do século passado como herói de uma resistência popular: é a pátria dessa classe álacre de artistas e intelectuais que estetizaram o malandro como emblema da cultura urbana carioca: a navalha no bolso, o sapato bicolor de bico fino, a camisa listrada, o terno branco de linho, a calça de boca estreita, a roda de samba, a rasteira no cidadão, o desdém pelo trabalho e pelo trabalhador “otário”; a cidade é o solo em que germinou uma cinematografia predecessora em anos da “estética da superfície” – a estética da MTV – com sua oca versão romântica do bandido Lúcio Flávio (passageiro de qual agonia? da agonia de quem?). É essa a tradição que ainda hoje inspira boa parte da produção cultural da cidade, que eleva à categoria de valor o comportamento do “escracho” e da incivilidade; é a tradição que entronizou a “lei de Gérson”, com jurisdição cotidiana e que aproxima autoridades de bicheiros, bicheiros de sambistas e todos eles da constelação de alegres celebridades locais – e como brilham! – que abarrota os camarotes de luxo na Marquês de Sapucaí.
O traficante de drogas é o produto típico desse caldo de cultura: trocou o sapato bicolor pelo tênis Reebock, a calça de boca estreita pelo jeans importado, o paletó pela camisa pólo com estampado dernier cri, a navalha pelo AK-47. É o malandro pós-moderno, que não crê em representações e que levou a serio a cultura que o criou: de emblemática figura a dono e déspota do pedaço. Ele mata, tortura, intimida e aterroriza. O corpo que as adolescentes de Piedade velam na foto foi arrastado por toda a extensão do Morro da Caixa D’Água até o asfalto; já na rua, os três traficantes, armados com fuzil e duas pistolas e sem demonstrar temor, interromperam o trânsito na rua Clarimundo de Melo, para que o corpo fosse arrastado até a calçada do outro lado da via, e o abandonaram próximo à esquina com a rua Palma. O despacho macabro assustou motoristas e pedestres que passavam pelo local no momento da desova. Minutos depois, todas as casas comerciais fecharam as portas e os moradores entraram para suas casas.
Seria demasiado simples condensar no traficante a historicidade da pobreza e da misérias dos morros cariocas e transformar o tráfico de drogas numa outra versão da desgastada “estratégia de sobrevivência” das classes populares. Seria confortável acomodar e mascarar nesse clichê sociológico a natureza blasé de nossa culta e sofisticada consciência social. Mas isso não funciona. Escadinha não era pobre nem miserável, o Dênis da Rocinha não veio de família destituída e nem o Marcinho VPdo Morro Santa Marta, jamais soube o que é fome ou frio. Os grandes chefes do tráfico nem de longe representam o conceito quase mítico das “classes perigosas”. De fato, “traficante” tornou-se outra das generalidades em curso entre os bem-pensantes, uma abstração, um mero conceito, um tipo ideal weberiano, uma “pessoa estatística”, para usar a expressão de Mark Seltzer em seu estudo do serial killer americano. Asociologização do traficante, a produção desse clichê tornou-se o nosso modo de reconhecer a qualidade violenta da cultura carioca mas, simultaneamente, o modo de negá-la em sua manifestação mais sensível e dolorosa.
Não se trata aqui tão-somente da impotência de uma certa linguagem para expressar uma determinada consciência, mas sobretudo de que o uso exclusivo e abusivo dessa linguagem denota um tipo particular de crueldade que Richard Rorty chamou deincuriosity: a cegueira de certos tipos de indivíduos à dor e ao sofrimento de outras pessoas.

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O que fazer? Pode-se seguir a sugestão do próprio Rorty, que é a de elaborar um novo vocabulário privado que resgate a substância de um genuíno humanismo e delineie os traços básicos da nossa nova identidade de cidadãos. E também um novo vocabulário público que nos resgate da agonia das generalidades e das metáforas congeladas. Ambos certamente seriam de grande ajuda no tratamento da incuriosity.
Uma alternativa mais modesta (e mais honesta) seria a de alertar os consumidores de nossos produtos – teorias e tabulações, seminários e simpósios performáticos – para eventuais defeitos da mercadoria. Por exemplo, esta advertência que encontrei nos sagrados The Books of Bokonon: “Todas as verdades que estou para vos revelar são, todavia, deslavadas mentiras”.
Podemos, finalmente, admitir que as coisas são assim mesmo, que o mundo está cheio de maldade, de dor e de sofrimento. Mas, como diria o metafórico dentista do romance de Günter Grass, nada que não se resolva com uma ou duas gotas de anestesia local.

NOTAS
[1] COELHO, Edmundo Campos. “Anestesia Local:  um Sociólogo na Oficina do Diabo”, em A Oficina do Diabo. Rio de Janeiro : Record, 2005, pp. 417-428. Esse artigo foi primeiramente publicado na revista Insight – Inteligência, p. 66-73, maio-junho-julho de 1998, e posteriormente revisto pelo autor para a edição que foi republicada postumamente, na coletânea organizada pela esposa de Edmundo Campos Coelho, senhora Magda Prates Coelho, e que serviu para esta reprodução no Proveitos Desonestos.
[2] Edmundo Campos Coelho foi professor e pesquisador do antigo-IUPERJ (hoje IESP-UERJ), e dono de uma extensa contribuição sobre as relações cívico-militares, o sistema prisional e a violência no Brasil, e ainda na área da Sociologia das Profissões. Publicou: A Sociologia da Burocracia (org.); Em Busca de Identidade: o Exército e a Política na Sociedade Brasileira; A Ecologia do Crime; A Fusão: Política do Dispêndio; A Oficina do Diabo: Crise e Conflitos no Sistema Penitenciário do Rio; A Sinecura Acadêmica: a Ética Universitária em Questão; As Profissões Imperiais: Medicina, Engenharia e Advocacia no Rio de Janeiro, 1822-1930.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

O que é educação liberal?

Por Leo Strauss

Discurso proferido na 10ª cerimônia anual de graduação do programa básico de educação liberal para adultos, em 6 de junho de 1959.
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Vocês obtiveram uma educação liberal. Eu os parabenizo por essa conquista. se fosse minha única obrigação, faria apenas elogios pela conquista. Mas não estaria cumprindo com o dever que assumi se não complementasse minhas felicitações com um alerta. a educação liberal que obtiveram vai evitar o perigo de que tal advertência seja compreendida como um conselho desesperado.
Educação liberal é educação em cultura ou para a cultura. o produto acabado da educação liberal é um ser humano de cultura. “cultura” significa primariamente agricultura: o cultivo do solo e seus produtos, o cuidado do solo, a melhoria da terra de acordo com sua natureza. Derivadamente, “cultura” significa hoje principalmente o cultivo da mente, o cuidado e a melhoria das faculdades natas da mente de acordo com a natureza da mente. Assim como o solo precisa de cultivadores, a mente precisa de professores. mas não é tão fácil encontrar professores quanto é encontrar agricultores. os próprios professores são pupilos e devem ser pupilos. Porém, não pode haver um regressão infinita: em última instância, deve haver professores que não são, por sua vez, pupilos. Esses professores que não são, por sua vez, alunos são as grandes mentes ou, para evitar qualquer ambiguidade num tema de tamanha importância, as maiores mentes. tais homens são extremamente raros. provavelmente não encontraremos nenhum deles na sala de aula. Provavelmente não os encontraremos em lugar nenhum. É uma questão de sorte se houve um deles vivo durante sua época. Para todos os fins práticos, os pupilos, em qualquer nível de proficiência, só têm acesso aos professores que não são, por sua vez, pupilos, ou às grandes mentes, por intermédio das grandes obras. a educação liberal então consiste em estudar com o devido cuidado as grandes obras deixadas pelas maiores mentes – um estudo no qual os alunos mais experientes ajudam os menos experientes, incluindo os iniciantes.
Não é uma tarefa fácil, como poderia parecer se considerássemos a fórmula que acabo de mencionar. essa fórmula requer um longo comentário. Muitas vidas foram gastas e ainda podem ser gastas na elaboração desses comentários. Por exemplo, o que significa dizer que as grandes obras devem ser estudadas “com o devido cuidado”? No momento, menciono apenas uma dificuldade que é óbvia para todos vocês: nem todas as maiores mentes nos dizem as mesmas coisas em relação aos temas mais importantes; a comunidade dessas maiores mentes é rasgada pela discórdia, até por vários tipos de discórdia. Independentemente das consequências que isso possa gerar, uma dessas consequências certamente é que a educação liberal não pode ser simplesmente uma doutrinação. e aqui eu menciono mais uma dificuldade. “A educação liberal é educação em cultura.” Que cultura? nossa resposta é: cultura no sentido da tradição ocidental. mas a cultura ocidental é apenas uma entre muitas. ao nos limitarmos à ocidental, não condenamos a educação liberal a um tipo de paroquialismo? e o paroquialismo não é incompatível com o liberalismo, a generosidade, a mente aberta da educação liberal? Nossa ideia de educação liberal não parece se encaixar numa época consciente do fato de que não existe a cultura da mente humana, mas uma variedade de culturas. obviamente, “cultura”, se suscetível a ser usada no plural, não é o mesmo que “culture”, que é singulare tantum, só podendo ser usada no singular. a “cultura” já não é mais absoluta, ela se tornou relativa. não é fácil dizer o que significa a cultura suscetível a ser usada no plural. Como consequência dessa obscuridade, as pessoas sugerem, explícita ou implicitamente, que a “cultura” é qualquer padrão de conduta comum a qualquer grupo humano. Assim, não hesitamos em falar de cultura de subúrbios, cultura das gangues juvenis, delinquentes ou não. Em outras palavras, todo ser humano fora do hospício é um ser humano culto, pois ele participa de uma cultura. Nas fronteiras da pesquisa surge a questão sobre se há ou não culturas entre os membros de um hospício. Se contrastarmos o uso atual de “cultura” com seu significado original, é como se alguém dissesse que o cultivo de um jardim pode consistir no jardim sendo sujado por latas vazias, garrafas de uísque e papeis amassados jogados pelo jardim de forma aleatória. tendo chegado a esse ponto, percebemos que perdemos nosso caminho de alguma forma. Vamos então começar de novo, levantando a seguinte questão: o que a educação pode significar aqui e agora?
A educação liberal é a alfabetização de certo tipo: algum tipo de educação em letras e através das letras. Não há necessidade de justificar a alfabetização – todos os eleitores sabem que a democracia moderna mantém-se ou cai pela alfabetização. para entender isso, precisamos refletir sobre a democracia moderna. O que é a democracia moderna? Antes dizia-se que a democracia é o regime que se mantém ou entra em colapso em função da virtude: uma democracia é um regime no qual todos, ou a maioria dos adultos, são homens de virtude. Como a virtude parece exigir conhecimento, é um regime no qual todos, ou a maioria dos adultos, são virtuosos e sábios, ou a sociedade na qual todos, ou a maioria dos adultos, desenvolveram sua razão a um nível alto – ou a sociedade racional. a democracia deveria ser uma aristocracia que se ampliou para uma aristocracia universal. antes do surgimento da democracia moderna, havia dúvidas sobre se a democracia entendida dessa forma era possível. como colocou uma das mentes mais brilhantes entre os teóricos da democracia: “se houvesse um povo composto por deuses, ele seria governado de forma democrática. Um governo de tal perfeição não é para seres humanos.” Essa opinião discreta hoje se tornou um alto-falante de alta potência. existe toda uma ciência – a ciência que eu, entre milhares, professo ensinar, a ciência política – cujo tema é o contraste entre a concepção original de democracia, ou o que se pode chamar de ideal de democracia, e a democracia como ela é. Segundo um pensamento extremo, predominante na profissão, o ideal de democracia foi uma completa ilusão, e a única coisa que importa é o comportamento das democracias e o comportamento dos homens em democracias. a democracia moderna, muito longe de ser uma aristocracia universal, seria o domínio das massas, se não fosse pelo fato de que a massa não pode dominar, mas é dominada pelas elites (por exemplo, grupos de homens que, por qualquer razão, estão no topo ou contam com uma boa chance de chegar ao topo). uma das virtudes mais importantes exigidas para o funcionamento sem trancos da democracia, no que se refere às massas, é a apatia eleitoral, ou a falta de espírito público. Certamente não o “sal da terra”, mas o sal da democracia moderna são os cidadãos que não leem nada, exceto a página de esportes e os quadrinhos. a democracia é portanto, realmente, não o domínio das massas, mas a cultura de massas. uma cultura de massa é uma cultura que pode ser apropriada pela capacidade média sem qualquer esforço intelectual ou moral, a um preço monetário muito baixo. mas até mesmo uma cultura de massa, e precisamente uma cultura de massa, exige uma oferta constante do que se chama de novas ideias, que são os produtos do que se chama de mentes criativas: até mesmo músicas de comerciais perdem seu apelo se não variarem de tempos em tempos. mas a democracia, mesmo se só for considerada a concha que protege a cultura de massa, exige, no longo prazo, qualidades de um tipo totalmente diferente: qualidades de dedicação, concentração, amplitude e profundidade. Assim, entendemos mais facilmente o que significa a educação liberal aqui e agora. A educação liberal é o antídoto para a cultura de massa, para os efeitos corrosivos da cultura de massa, para sua tendência inerente de produzir nada, a não ser “especialistas sem espírito ou visão e apreciadores do prazer sem coração”. A educação liberal é a escada pela qual tentamos subir da democracia das massas à democracia em seu sentido original. A educação liberal é o esforço necessário para fundar uma aristocracia dentro da sociedade de democracia de massa. A educação liberal lembra aos membros de uma democracia de massa que tenham ouvidos para ouvir sobre a grandiosidade humana.
Algumas pessoas podem afirmar que essa ideia de educação liberal é meramente política, que assume dogmaticamente que a democracia moderna é boa. Não podemos virar as costas para a sociedade moderna? não podemos voltar à natureza, à vida em tribos não alfabetizadas? não estamos esmagados, nauseados, degradados pelo material impresso massivo, cemitério de tantas florestas belas e majestosas? Não é suficiente dizer que isso é mero romantismo, que hoje não podemos voltar à natureza: as próximas gerações, depois de um cataclismo forjado pelo homem, não podem se sentir atraídas por viver em tribos não alfabetizadas? Nossos pensamentos sobre guerras termonucleares não serão afetados por essas possibilidades? Certamente os horrores da cultura de massa (que inclui passeios guiados pela natureza intacta) tornam inteligível o anseio pela volta à natureza. uma sociedade analfabeta, no melhor dos casos, é uma sociedade governada por antigos costumes ancestrais que derivam dos fundadores originais, deuses, filhos de deuses ou pupilos de deuses. Como não há letras numa sociedade assim, os herdeiros não podem estar em contato direto com os fundadores originais; eles não sabem se os pais ou avós desviaram-se do que os fundadores queriam dizer originalmente, se transformaram a mensagem divina com adições ou subtrações humanas. assim, uma sociedade não alfabetizada não consegue agir de forma consistente sobre seu princípio de que o melhor é o mais antigo. Apenas letras que vieram dos fundadores podem permitir que os fundadores falem diretamente aos últimos herdeiros. É contraditório querer retornar à não alfabetização. Somos obrigados a viver com livros. mas a vida é curta demais para viver com quaisquer livros que não sejam os melhores. Nesse sentido, fazemos bem em tomar como nosso modelo aquele entre as maiores mentes que, por causa do seu senso comum, é o mediador entre nós e as grandes mentes. Sócrates nunca escreveu um livro, mas os lia. Permitam-me citar uma frase de sócrates que diz quase tudo que há para ser dito sobre o nosso tema, com a nobre simplicidade e a tranquila grandiosidade dos antigos: “assim como os outros se agradam com um bom cavalo, cachorro ou pássaro, eu me agrado ainda mais com bons amigos... e os tesouros dos homens sábios de antigamente, que eles deixaram por escrito em livros, eu desvendo e percorro com meus amigos. se vemos algo bom, selecionamos e consideramos um ótimo ganho se, dessa forma, nos tornamos úteis um para o outro.” o homem que faz esse discurso acrescenta um comentário: “Quando ouvi isso, me pareceu que sócrates era abençoado e que ele liderava os homens que os escutavam em direção a um perfeito cavalheirismo.” esse relato é falho, pois não nos diz nada sobre o que sócrates fazia em relação àquelas passagens nos livros dos homens sábios antigos que ele não sabia se eram boas. em outro relato, aprendemos que eurípedes deu a sócrates os escritos de heráclito, e então pediu a opinião dele. sócrates disse: “o que eu entendi é grandioso e nobre; acredito que o mesmo se aplique ao que eu não entendi; mas certamente é necessária uma ferramenta para entender esses escritos.”
Educação para um cavalheirismo perfeito, para a excelência humana, a educação liberal consiste em lembrar a pessoa da grandiosidade humana. De que formas a educação liberal nos lembra a grandiosidade humana? não podemos ter pensamento mais elevado sobre o que a educação liberal significa. ouvimos falar da sugestão de platão de que a educação é o sentido mais alto na filosofia. A filosofia é a busca por sabedoria ou a busca por conhecimento das coisas mais importantes, mais altas, mais abrangentes; esse conhecimento, como ele sugeriu, é a virtude e a felicidade. Mas a sabedoria é inacessível ao homem e, portanto, a virtude e a felicidade sempre serão imperfeitas. apesar disso, o filósofo – que, como tal, não é simplesmente sábio – é declarado como o único rei verdadeiro. Declara-se que ele tem todas as excelências das quais a mente humana é capaz, no mais alto nível. A partir disso, concluímos que não podemos ser filósofos – não podemos adquirir a forma mais alta de educação. Não devemos nos deixar enganar pelo fato de que encontramos muitas pessoas que se dizem filósofos. elas empregam uma expressão vaga, talvez por conveniência administrativa. muitas vezes, querem dizer que são membros de departamentos de filosofia. É tão absurdo esperar que membros de departamentos de filosofia sejam filósofos quanto é absurdo esperar que membros de departamentos de arte sejam artistas. podemos não ser filósofos, mas podemos amar a filosofia, podemos tentar filosofar. Essa filosofia consiste primariamente e, de certa forma, principalmente em escutar a conversa entre os grandes filósofos ou, de forma mais geral e cautelosa, entre as maiores mentes, portanto estudar as grandes obras. as maiores mentes a quem devemos ouvir não são, de forma alguma, exclusivamente as grandes mentes do ocidente. É simplesmente uma contingência infeliz que nos impede de ouvir as maiores mentes da Índia e da china: não entendemos sua linguagem, e não podemos aprender todos os idiomas. De novo, a educação liberal consiste em escutar a conversa entre as maiores mentes. Mas aqui somos confrontados com a grande dificuldade de que essa conversa não ocorre sem nossa ajuda – o fato de que devemos fazer essa conversa acontecer. As maiores mentes fazem monólogos. Devemos transformar seus monólogos num diálogo, seus “lado a lado” num “juntos”. As maiores mentes produzem monólogos até quando escrevem diálogos. Quando observamos os diálogos platônicos, vemos que nunca existe um diálogo entre mentes da ordem mais alta: todos os diálogos de platão são diálogos entre um homem superior e um homem inferior a ele. platão aparentemente achava que não era possível escrever um diálogo entre dois homens da ordem mais alta. Devemos, então, fazer algo que as maiores mentes não puderam fazer. Vamos encarar essa dificuldade – uma dificuldade tão grande que parece condenar a educação liberal como um absurdo. como as maiores mentes se contradizem umas às outras em relação aos temas mais importantes, nos obrigam a julgar seus monólogos; não podemos confiar no que nenhuma delas diz. Por outro lado, não podemos deixar de notar que não somos competentes para sermos juízes. Esse estado das coisas é disfarçado por uma série de ilusões superficiais.
De alguma forma acreditamos que nosso ponto de vista é superior, melhor que o das maiores mentes – ou porque o nosso ponto de vista é o do nosso tempo, e nosso tempo, sendo mais recente que o das maiores mentes, é presumido como superior; ou porque acreditamos que cada uma das maiores mentes estava certa a partir de seu ponto de vista, mas não absolutamente certa. nós sabemos que não pode haver uma visão simplesmente verdadeira, mas apenas uma visão formal verdadeira; essa visão formal consiste na ideia de que toda visão abrangente é relativa a uma perspectiva específica, ou que todas as visões abrangentes são mutuamente exclusivas e nada pode ser simplesmente verdadeiro. as ilusões que nos enganam quanto à nossa situação verdadeira correspondem a isso: que nós somos, ou podemos ser, mais sábios do que os mais sábios homens do passado.
Assim, somos induzidos a interpretar o papel não de ouvintes atentos e dóceis, mas de agentes e domadores de leões. mesmo assim, devemos encarar nossa impressionante situação, criada pela necessidade de tentarmos ser ouvintes mais atentos e dóceis, quer dizer, juízes, ainda que não competentes para sê-lo. para mim, a causa dessa situação é que perdemos todas as tradições simplesmente autorizadas nas quais poderíamos confiar, o nomos que nos deu orientação, porque nossos professores imediatos e professores dos professores acreditavam na possibilidade de uma sociedade simplesmente racional. Cada um de nós aqui se vê inclinado a encontrar sua própria orientação por esforço próprio, apesar das falhas.
Não temos conforto a não ser por aquele inerente a essa atividade. a filosofia, como aprendemos, deve estar alerta contra o desejo de ser edificante – a filosofia só pode ser intrinsecamente edificante. não podemos exercer nosso conhecimento sem, de tempos em tempos, entender algo de importância; e esse ato de entendimento pode ser acompanhado pela conscientização do nosso entendimento, pelo entendimento do entendimento, por noesis noeseos. É uma experiência tão alta, tão pura, tão nobre que aristóteles a atribuía ao seu Deus. Essa experiência é inteiramente independente de se o que entendemos primariamente é agradável ou desagradável, bonito ou feio. isso nos leva a perceber que todos os males são, de certa forma, necessários para o entendimento. Isso nos permite aceitar todos os males que nos ocorrem e que podem nos ferir no espírito de bons cidadãos da cidade de Deus. Ao tomar consciência da dignidade da mente, percebemos a verdadeira base da dignidade do homem e, com isso, a bondade do mundo, que é o lar do homem porque é lar da mente humana.
A educação liberal, que consiste na permanente troca com as maiores mentes, é um treinamento na forma mais alta de modéstia, para não dizer de humildade. É, ao mesmo tempo, um treinamento de ousadia: ela exige de nós uma ruptura total com o silêncio, a pressa, o descuido, o barato da feira de vaidades dos intelectuais e dos seus inimigos. Exige de nós a ousadia implícita na determinação de considerar as visões aceitas apenas como opiniões, ou considerar as opiniões médias como extremas, pois têm no mínimo a mesma probabilidade de estarem erradas que as opiniões mais estranhas ou menos populares. A educação liberal é a libertação da vulgaridade. Os gregos tinham uma bela palavra para “vulgaridade”; eles diziam apeirokalia, falta de experiência em coisas bonitas. a educação liberal nos oferece experiência em coisas bonitas.

(encontrado em: https://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/o-que-e-educacao-liberalij )

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